O Homem Sem Qualidades | Robert Musil


"Podemos começar pela singular predilecção que o pensamento científico tem por explicações mecânicas, estatísticas, materiais, às quais, poderia dizer-se numa imagem, foi arrancado o coração. Ver na bondade apenas uma forma especial de egoísmo; relacionar as emoções com secreções internas; constatar que o ser humano é formado, em oito ou nove décimos, por água; explicar a célebre liberdade moral do carácter como apêndice mental automático do comércio livre; atribuir a beleza a uma digestão fácil e a bons tecidos adiposos; reduzir a procriação e o suicídio a gráficos anuais que mostram como necessidade aquilo que parece ser a mais livre das decisões; estabelecer afinidades entre o êxtase e a demência; equiparar o ânus e a boca, como extremidades rectal e oral da mesma coisa...: este tipo de concepções, que, por assim, dizer, põem a descoberto o truque por trás do passe de mágica das ilusões humanas, contam sempre com uma espécie de preconceito favorável que as faz passar por particularmente científicas. O que aí amamos é, de facto, a verdade; mas à volta desse amor nu há um gosto pela desilusão, a violência, a inexorabilidade, a fria intimidação e a seca admoestações, uma maliciosa predilecção, ou pelo menos uma involuntária emanação emocional desse tipo."

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