Julien Gracq | A Costa das Sirtes



"Evidentemente que Marino envelhecera, e contudo essa animalidade não era senil. Degenerava da inteligência, simplesmente por viver a maiores profundidades. Evocava antes a estupidez sagaz da atenção total, e fazia-me pensar às vezes na expressão fascinante que a vida concentrada numa interrogação orgânica profunda confere às feições: a do médico na auscultação, a da mulher que vigia a sua gravidez, a do animal temeroso que, no fundo da sua noite quente, está chocando a anunciação obscura de um tifo ou de um maremoto. Perante aquela tensão quase interdita surge-nos a sensação de que entra então no próprio acto de enfrentar algo de sacrílego; um instinto nos adverte de que o espírito que ali à nossa frente se enterra cada vez mais profundamente se aproxima com grande perigo de certos centros interditos em que algo se agita, e assim uma débil ruga cavada no rosto de Marino me parecia de súbito equilibrar noutro ponto uma enorme pressão: eu desviava os olhos à pressa e parecia-me que o coração me batia mais rapidamente."

Comentários