James Joyce | Gente de Dublin



"Desta vez estava desenganado; era o terceiro ataque. Todas as noites, ao passar por casa dele (era em tempo de férias) eu me punha a observar o rectângulo luminoso da janela e todos os dias reparava em como aquela luz era mortiça e sempre igual. Se ele tivesse já morrido – pensava eu – havia de se ver na cortina obscurecida o reflexo das velas. Por essa altura, já eu sabia que era costume colocar duas velas à cabeceira dos mortos. Muitas vezes ele me dissera: “Já não duro muito”, mas supunha que dizia aquilo por dizer. Agora sei que tinha razão. Todas as noites, quando olhava para a janela, murmurava mansamente para comigo próprio a palavra paralisia, que soava então aos meus ouvidos como um termo singular, tal como me acontecia, na geometria euclidiana, com a palavra gnomon e no catecismo com a palavra simonia. Mas agora, soava dentro de mim como se fosse o nome de um ser maligno e tresandando a pecado. Enchia-me de terror e, contudo, ansiava por me aproximar dela e por contemplar o seu mortal poder de destruição."

"A minha intenção era escrever um capítulo da história moral do meu país e escolhi Dublin como cenário porque a cidade se me afigura como o centro da paralisia. Tentei apresentá-la ao público indiferente sob quatro dos seus aspectos: a infância, a adolescência, a maturidade e a vida pública. Cheguei à conclusão de que não consigo escrever sem ofender as pessoas."

Comentários

fallorca disse…
«Tentei apresentá-la ao público indiferente sob quatro dos seus aspectos: a infância, a adolescência, a maturidade e a vida pública. Cheguei à conclusão de que não consigo escrever sem ofender as pessoas.»
Belo "papiro do dia" :)))
imo disse…
;)