Raul Brandão | A Morte do Palhaço
"Era agora a sua vez. Desceu as escadas, apegando-se ao corrimão, atravessou o corredor, entrevendo, nos camarins, pedaços de estofos, cartazes, pinceladas, notas escarlates, leques de gás, uivos vermelhos de tecidos, cabeças enfarinhadas, bocas rasgadas, colos, músculos de pernas... A vida misteriosa e errante dera-lhe aspectos e linhas que tudo sabiam exprimir: canduras e vícios, a lama, as perversões mais ignóbeis das cidades e o olhar terno das virgens... Tinha tics, olhares em gume, simples gestos que bastavam para sugerir desgraças, mágoas, miséria e tudo o que fere as almas sensíveis. Dir-se-ia que vivera tudo e tudo conhecera: já fora cocheiro, mendigo e director de bancos poderosos, poeta e príncipe, bandido na Calábria, e porventura amado por uma linda mulher, que de paixão se finara. Cá fora, finda a noite de circo, emudecia numa tristeza abandonada, e absorto dobrava-se à beira da sua alma, como na margem dum lado... Apenas, porém, entrava na arena, enorme, esquelético, calvo e vestido de púrpura - assim tivesse atravessado um rio de sangue ou a vida - logo a sua figura se transformava, e nunca palhaço soube exprimir como ele o lado grotesco da desgraça e a amargura do riso. Ia à morte e desconjuntava-a: entortava-lhe as pernas, punha-lhe a foice à banda e descobria-lhe a calva. Dir-se-ia que o seu riso era feito da experiência da vida e que esse palhaço estranho fora construído com a lama de todos os vícios e com as lágrimas de todas as amarguras.
Quem cortou a corda do trapézio?"
Comentários