Enrique Vila-Matas | Dublinesca



"Não me conheço. O meu catálogo editorial parece ter ocultado para todo o sempre a pessoa que está por detrás dos livros que fui publicando. A minha biografia é o meu catálogo. Mas falta o homem que ali estava antes de me decidir a ser editor. Falto eu, definitivamente."

"A angústia transmitida por todo o vislumbre de demência vai deixando-o perdido numa deriva estranha pelo perigoso bairro infantil que há nos limites da sua mente, ali onde sabe que, a qualquer momento, pode perder-se para sempre. Mas, no último segundo, consegue escapar do perigo mudando de pensamentos, recordando, por exemplo, que tem inteligência moral, embora às vezes lhe pareça muito pouco ter só isso e outras, muito. E escapa finalmente do perigo recordando também que no próximo mês irá a Dublin. E recordando uma frase de Monica Vitti, em Il deserto rosso, uma frase que, para dizer a verdade - apercebe-se agora -, é quase tão perigosa como o pode ser para todo o mundo o East End mais delirante e mais obsessivamente particular:
- Os cabelos magoam-me."

"Estou no centro do mundo, pensou. E, olhando para os arranha-céus, ficou à espera de receber sensações de entusiasmo, de emoção, de plenitude, de felicidade. No entanto, a espera revelou-se unicamente como uma espera, mais nada. Uma espera plana, sem sobressaltos, sem qualquer entusiasmo. Quanto mais olhava para os arranha-céus em busca de uma certa intensidade, mas evidente se tornava que nenhuma sensação especial iria atingi-lo. Tudo continuava idêntico na sua vida, não acontecia nada que pudesse parecer-lhe diferente ou intenso. Encontrava-se dentro do seu sonho, e ao mesmo tempo o sonho era real. Mas isso era tudo.
Ainda assim, insistiu. Olhou uma e outra vez para a rua, experimentando, sem êxito, sentir-se feliz rodeado de arranha-céus, até que compreendeu que era bastante absurdo estar a comportar-se como certas pessoas de que falava Proust: «... tal como aquelas pessoas que partem de viagem para ver com os seus próprios olhos uma cidade desejada, imaginando que numa coisa real se pode saborear o encanto do sonhado.»
Quando viu que era inútil continuar à espera de estar dentro daquele sonho, decidiu deitar-se. Cansado pela viagem, não tardou a adormecer. Sonhou, então, que era uma criança de Barcelona que jogava futebol num pátio de Nova Iorque. Plenitude absoluta. Nunca se tinha sentido mais pletórico na sua vida. Descobriu que o génio do sonho, contrariamente ao que ele cria, não era a cidade, não era Nova Iorque, mas o menino que jogava. E ele teve de ir a Nova Iorque para sabê-lo."

"Sonha com o dia em que a queda do feitiço do best-seller dê lugar ao reaparecimento do leitor com talento e que se retomem os termos do contrato moral entre autor e público. Sonha com o dia em que os editores literários possam respirar de novo, aqueles que se mortificam por um leitor activo, por um leitor suficientemente aberto para comprar um livro e permitir na sua mente o desenho de uma consciência radicalmente diferente da sua própria. Acredita que, se se exige tanto talento a um editor literário ou a um escritor, deve-se exigi-lo também ao leitor. Porque não devemos enganar-nos: a viagem da leitura passa, muitas vezes, por terrenos difíceis que exigem capacidade de emoção inteligente, vontade de compreender o outro e de se aproximar de uma linguagem distinta das nossas tiranias quotidianas. Como diz Vilém Vok, não é assim tão simples sentir o mundo como Kafka o sentiu, um mundo em que se nega o movimento e se torna impossível ir sequer de um povoado a outro. São tão necessárias as mesmas habilidades para escrever como para ler. Os escritores desiludem os leitores, mas também acontece o reverso e os leitores desiludem os escritores quando só procuram nestes a confirmação de que o mundo é como eles o vêem."

(Desisto. Há selecções impossíveis. Teria de colocar o livro inteiro.)

Comentários

fallorca disse…
Boa convalescença ;)
imo disse…
Gracias!
rosa disse…
Por vezes quando estou numa cidade que não conheco, quase que me obrigo a sentir algo tão especial como a própria cidade.
Não por aí.

"- Os cabelos magoam-me."


:)
imo disse…
Algumas cidades são como pousar a cabeça...

:)