Jorge Fallorca | Al-Khaïma
"Passamos a noite toda naquilo. Contou-me histórias fabulosas num árabe, suponho que fluente e imaginativo, que procurei retribuir com o meu português então muito magoado e transtornado pelos ácidos ingeridos no Bairro de S. Miguel, onde vegetava. E alguma coisa terei conseguido, a avaliar pela atenção com que me escutava: o borrão do charro denunciava-lhe o brilho inesquecível dos olhos, a boca entreaberta de incredulidade pelas queixas, alegrias e projectos que lhe confidenciei como a ninguém, e que rematava com um conclusivo pigarrear que expulsava na areia.
Nunca nos interrompemos, e dávamos cada história por concluída com um sonoro Escala di madrugada... e mais um charro.
Lembro-me dele muitas vezes, sobretudo dessa noite mágica em que um árabe, provavelmente analfabeto, e um português provavelmente a contas com letras a mais, se sentaram numa praia a contar histórias um ao outro, cada um na sua língua, unidos pelo calor de um charro e o nome de um programa de rádio tão irreal, como a facilidade com que escalávamos a transpúnhamos as barreiras que nos boicotam o entendimento, reveladas pela inevitável madrugada que nos separou."
"Um reconheceu num livro sobre a mesa todos os livros que se sentira impelido a comprar - ou, se possível, a roubar descaradamente - sem sequer ter sido aliciado pelo título ou nome de autor; ao mesmo tempo que o outro sentia uma vontade irreprimível de se libertar da necessidade da presença de livros, como se um e outro desejassem demitir-se de um passado que começava naquele instante."
Comentários
E, claro, trouxe-te comigo ;)