Roberto Bolaño | Nocturno Chileno

Sordello? Qual Sordello?

"Lamentavelmente, quase não prestava atenção ao seu ajudante, entregue ao seu sonho obsessivo, caminhando através dos seus pesadelos, no fim dos quais estava sempre à sua espera a Colina dos Heróis, grave e calada, escura e nobre, o projecto, a obra de que conhecemos apenas fragmentos, a obra que muitas vezes julgamos conhecer mas que, na realidade, conhecemos muito mal, o mistério que trazemos no coração e que num momento de arrebatamento colocamos no centro de uma bandeja de metal trabalhada com caracteres micénicos, uns caracteres que balbuciam a nossa história e o nosso anseio e que na realidade apenas balbuciam a nossa derrota, precisamente aquela em que caímos e não sabemos, e pusemos o nosso coração no meio daquela bandeja fria, o coração, o coração, e o sapateiro estremecia na cama e falava sozinho e dizia a palavra coração e também a palavra fulgor e parecia que se afogava e o seu ajudante entrava no quarto daquela pousada fria e dizia-lhe palavras tranquilizadoras, acorde, senhor, é só um sonho, senhor, e quando o sapateiro abria os olhos, uns olhos que segundos antes tinham visto o seu coração ainda palpitante no meio da bandeja, o ajudante oferecia-lhe um copo de leite quente e como resposta recebia uma palmada sem convicção, como se o sapateiro estivesse na realidade a afastar os seus próprios pesadelos e o olhava quase como se não conseguisse reconhecê-lo."