Salman Rushdie | Pisar o Risco
"Assim, Oz acabou por vir a ser o lar; o mundo imaginado tornou-se o mundo real, como acontece com todos nós, porque a verdade é que, depois de deixarmos os lugares da nossa juventude e de começarmos a fazer as nossas próprias vidas, armados apenas com o que temos e somos, compreendemos que o verdadeiro segredo dos sapatos de bailado vermelhos não é aquele não há melhor lugar que o nosso lar, mas antes que já não há lugar que seja o lar, excepto, evidentemente, o lar que nós próprios fazemos ou os lares que outros fazem para nós, em Oz, que está em toda a parte e qualquer parte que seja, menos no lugar pelo qual começamos.
No lugar em que eu próprio comecei, afinal de contas, vi o filme do ponto de vista da criança - o ponto de vista de Dorothy. Senti com ela a frustração de ser posta de parte pelo tio Henry e pela tia Em, ocupados com a sua enfadonha contabilidade de adultos. Como todas as pessoas crescidas, não eram capazes de prestar atenção ao que realmente era importante para Dorothy; nomeadamente, a ameaça pendente sobre Totó. Fugi com Dorothy e, a seguir, voltei para trás. O próprio choque que experimentei ao descobrir que o Feiticeiro era uma fraude foi a experiência de criança de um choque, o choque de perder a fé infantil nos adultos. Talvez tenha sentido, também, qualquer coisa de mais profundo, qualquer coisa que não podia articular; talvez tenha sentido a confirmação de uma meia-suspeita que me passasse pela cabeça em relação aos adultos.
Agora, enquanto volto a ver o filme, sou eu o adulto falível. Membro da tribo dos pais imperfeitos que não são capazes de ouvir as vozes dos seus filhos. Agora fui eu, que já não tenho pai, que me converti em pai, e eis-me votado ao destino de ser incapaz de satisfazer os anseios de uma criança. É esta a última e a mais terrível lição do filme: que há um rito de passagem final e inesperado. Todos acabamos, deixando de ser crianças, por nos transformar em magos sem magia, conjurados desmascarados, que não dispõem de mais que a sua simples humanidade para continuar em frente.
Agora, a fraude somos nós."
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